Hoje
nosso blog LITERATURA LIMITE (acesse www.literaturalimite.blogspot.com.br)
traz, em primeira mão, o primeiro capítulo do nosso novo livro sobre São
Domingos. Acontece que muito material ficou de fora do CRÔNICAS DO PUCUMÃ, em
virtude de exigências editoriais, e assim
resolvemos partir para um segundo livro sobre nossa cidade chamado SÃO
DOMINGOS REVISITADA (no feminino mesmo porque revisitada refere-se à cidade e
não ao município). Aceito sugestões e colaborações dos leitores e moradores de
São Domingos, certamente contribuições que irão enriquecer este nosso novo
trabalho.
RECORDANDO UM AMIGO (1)
Convivi com o padre Manoel da Penha Oliveira durante vários
anos, quase diariamente. Primeiro como sacristão, nos meus 12 anos de idade,
viajando por todos os povoados de São Domingos, onde ele rezava missa, casava e
batizava. Achava bom, pois, gozando saúde, todo
menino é um pouco guloso. E o padre era muito bem tratado. Sempre faziam bolos,
matavam gordos capões, saborosos assados, doces variados. Era uma festa para o
meu estômago.
E depois, como amigo,
durante sua campanha política, e nos anos seguintes, em São Luís, onde sempre
visitava-o em sua residência ou na Assembléia. E mais tarde, ao encontrá-lo por
aqui por São Domingos, em sua casa na Consolação, com o seu inseparável piano.
Sempre preocupado
com a Educação, padre Manoel chegando em São Domingos deparou-se com uma triste
realidade. Com exceção dos filhos da família Torres, dos filhos do meu tio e
padrinho Raimundo Almeida, do senhor João Henrique, seu Álvaro Bezerra, seu
Antoizinho Rodrigues, da família Cazé e mais uns poucos, a maioria dos pais não
podiam custear os estudos de seus filhos fora de São Domingos.
Havíamos terminado o
primário. Para que não ficássemos sem estudar, e esperando pelo milagre da
providência divina, ele criou um Curso de Exame de Admissão, um curso
preparatório para ingressarmos no ginásio. Era uma prática escolar àquela
época. Ficamos estudando e talvez por que tenha notado minha inteligência e
interesse pelos estudos, falou com meus pais sobre a possibilidade de mandarem-me
para um seminário para seguir os seus passos, ou seja, tornar-me padre.
Imaginem. Padre
Raimundo Fontenele. Só rindo. Aceitei o convite, minhas tias convenceram minha
mãe a deixar-me partir e em janeiro de 1962, graças ao Padre Manoel, lá fui eu,
levado pelo meu pai, o “grande” Ribinha, com destino a São Luís e lá ingressei
no Seminário de Santo Antônio onde só permaneci um ano.
No fim de 1962, após um balanço da minha vida no seminário
naquele ano, os padres chegaram à conclusão que eu não devia permanecer lá. Eu
tinha acumulado vários pontos no quesito matérias. Fui o melhor aluno, com as
notas mais altas, após uma disputa com um aluno de nome Ribamar, de Pedreiras.
Seminário e Igreja de Santo Antônio - SL |
Mas pesavam contra mim notas baixas no comportamento ou
disciplina. Porém, nada de grave. Faltinhas, molecagens, brincadeiras, pequenas rebeldias. Tipo ficar imitando
os padres, sentando na cadeira do professor, lá na frente da turma, imitando o
padre dizendo a missa, etc., e, ou era flagrado por um padre, ou então sempre
tem aqueles dedos-duros, fofoqueiros, o popular fuxiqueiro.
Resolveram me
desligar do seminário. Mas São Domingos pertence à Diocese de Caxias, e aqui
entra o caráter humanitário do Padre Manoel, além de caxiense era muito
admirado pelo bispo dom Luiz Gonzaga Marelim, o chefe da Diocese, ele conseguiu
que eu tivesse uma segunda chance e, assim, fui transferido para o Seminário da
Prainha, em Fortaleza.
Fosse outro, o padre
Manoel simplesmente lavaria as mãos como Pilatos e eu que fosse cuidar da minha
vida. Mas, não. Quando ele assumia um compromisso ele ia até o fim. Corresse o
risco que corresse. Era um homem de caráter forte, decidido. E lutava por
aquilo em que acreditava.
Enquanto isso, padre
Manoel resolveu fazer da Educação em São Domingos o seu segundo grande apostolado.
O primeiro era a Igreja. O segundo era a Escola. Assim, criou a Escola
Paroquial Santo Tomás de Aquino, tornando-se, cada vez mais, empenhado no
desenvolvimento espiritual de seu rebanho adulto e a cuidar com zelo e amor do
ensino e da educação da juventude são-dominguense.
Esta Escola
Paroquial Santo Tomás de Aquino foi o embrião de outra, a futura Escola Pio
XII, responsável pela formação de tantos jovens que se tornariam mais tarde,
médicos, advogados, engenheiros, enfermeiros, enfim, ilustres cidadãos
são-dominguenses.
Os nomes das Escolas eram uma homenagem a um
dos grandes doutores da Igreja, filósofo e teólogo da maior importância no
desenvolvimento e formulação da doutrina da Igreja Católica: São Tomás de
Aquino que era, junto com Santo Ambrósio e Santo Agostinho, a trindade de
doutores da Igreja Católica muito admirada pelos estudiosos desse ramo da
religião cristã. A Escola Pio XII tomou esse nome em homenagem ao Papa Pio XII,
cujo pontificado vai de 1939 até sua morte em 1958.
Entretanto, falando
em Educação, em nome de escolas, não podemos esquecer o espírito, a alma, a
coisa mais importante, aquilo sem o qual a Educação não existe, que são os
professores e professoras.
Por isso cito aqui,
pedindo desculpas pelos lapsos de memória, aqueles mestres e mestras que nunca
esqueci e que construíram a base educacional de São Domingos. Sejam professoras
particulares ou professores do ensino público.
Minha tia Lizeth
Fontenele Almeida, dona Judith Torres, pioneiras do ensino em nosso município.
Minha tia Nini, professora particular e a dona Zilda, a professora Maria Luiza
Brandão, professora Edelves, as irmãs colinenses, professoras Delza e Elza,
Dona Olga, professora Edelves, o dublê de caminhoneiro e professor, José
Alberto, a professora Eunice, seu Zé Carlos, primeiro gerente da Pernambucana
em São Domingos e sua esposa, ótima professora de português. Esses os nomes que
me vieram à mente ao escrever estas reminiscências.
O ano de 1963, passei-o quase todo no Seminário da Prainha, em Fortaleza.
Em outubro daquele ano fui desligado de vez do Seminário. Era muito mais rígido
do que o Seminário de São Luís. Sofri muito, por ser ainda novo, filho único,
longe de casa, não me sentia integrado, acho que os padres não iam com a minha
cara.
Enfim, me aconselharam a sair, uma forma mais branda do que
expulsão, visto que eu não havia cometido nenhuma falta grave.
Enquanto isso, o padre Manoel seguia sua vida e sua rotina em
São Domingos, dedicado à Igreja e à Escola, e, principalmente, atendendo a
todos, resolvendo problemas de toda sorte, confortando e consolando todos que
lhe procuravam, se interessando e se integrando sempre mais à vida da nossa
comunidade.
Desligado do seminário, para a igreja e para alguns padres a
gente passa a ser um proscrito, uma espécie de ovelha negra que não foi capaz
de se adaptar ao rebanho.
Tanto que, quando o reitor me chamou em sua sala para me
comunicar a minha dispensa, já estava com minha passagem de volta comprada, mas
só até Teresina. Depois eu que me virasse.
Mesmo sendo menor, havia recém completado quinze anos, naquele
tempo não havia essa preocupação de juizado de menor, de não poder viajar sem
acompanhamento, o certo é que dois dias depois peguei o ônibus da Empresa
Expresso de Luxo, Fortaleza-Teresina, e me mandei de lá, mais ansioso de gozar
a liberdade do que preocupado com a reação da família e do próprio padre Manoel
Naquele início dos
anos sessenta na maioria das cidades nordestinas não havia esse negócio de
rodoviária. Chegando em Teresina, desci do ônibus na Agência que ficava na
Praça Saraiva, peguei minha maleta e saí procurando onde passar a noite.
Numa ruazinha ali
mesmo perto da Praça descobri um Hotel, coisa simples, onde ficaria hospedado.
A dona chamou um empregado pra ir me mostrar o quarto, e o cara era um pretinho
homossexual, maranhense de São Luís, e se mostrou disposto a conversar.
Eu já tinha
decidido que ia aproveitar um pouco a liberdade antes de chegar em casa. E
perguntei pra ele sobre as novidades. Ele disse que era um show do cantor
cubano Bievenido Granda, um cantor de boleros, tangos e ritmos cubanos. Por
portar um grande bigode, no cartaz que anunciava seus shows, após seu nome,
acrescentavam “El bigode que canta”!
Sua música Perfume
de Gardênia era um sucesso em toda a América Latina, inclusive em todo o
território brasileiro. Falei para o carinha do hotel arranjar uma amiga que a
gente ia assistir o show no dia seguinte. Eu pagava tudo. Tinha um pouco de
dinheiro, e um relógio da marca “Hernavin”, novo em folha, que eu entreguei pra
o camareiro do hotel vender para nós.
Não apenas o show, mas fiquei uns três dias aproveitando a vida
e gastando a grana da venda do relógio, e quando dei um balanço vi que o
dinheiro mal dava para comprar passagem até Caxias.
De Teresina pra Caxias é um pulo, e eu cheguei à Casa Paroquial
na Praça São Benedito na hora do café da manhã. Os responsáveis pela paróquia
eram os monsenhores Clóvis e Gilberto e, conforme disse antes, quando a gente é
dispensando do seminário passa a ser olhado com outros olhos.
Fui tratado friamente pelos monsenhores, senti como se eles me
dissessem “olha, a gente não tem mais nenhuma obrigação para contigo, te
vira!”, pois nem para o café me convidaram.
Pedi para deixar minha maleta ali que em seguida voltaria para buscá-la,
e me danei a bater pernas pelas ruas, com os pensamentos mais sombrios agora me
acossando e me dando um aperto no coração. Praticamente expulso do seminário,
sem saber como enfrentar pais e tios, envergonhado perante o padre Manoel, e, o
pior, faminto e sem um tostão no bolso.
Naquela aflita caminhada fui parar na beira do rio Itapecuru e
até pensei como seria bom se aquelas águas me levassem e acabassem com todo
aquele sofrimento. Mas a fome falou mais alto.
Caminhei até a Praça do Mercado, cheia de movimento, de
caminhoneiros, de gente andando apressada pra lá e pra cá. Resolvi entrar numa
lanchonete e comer e depois, sem dinheiro para pagar, sair no pinote, correndo
mesmo e fosse o Deus quisesse. E foi o que fiz.
Comi um pastel e uma fatia de bolo e fiquei bebericando o resto
do café com leite, devagar, devagarinho, criando coragem pra pegar o embalo e
correr dali e daquela situação deveras vexatória, humilhante. Nem sei direito
os sentimentos que me afligiam tantos e tão diversos eram.
O certo é quando cheguei no limite do suportável, coloquei a
xícara no balcão e comecei a tomar impulso pra me pírulitar dali, quando,
mandado por Deus, vejo entrando na lanchonete um conhecido, amigo do meu pai, o
senhor Zuca da Totonha. Ele era caminhoneiro, casado com dona Totonha irmã da
dona Alvina e da dona Santana do Sebastião Mota.
Joguei-me nos
braços do seu Zuca, até alguma lágrima deve ter rolado, e lhe contei
rapidamente minha situação. Ele disse que não me preocupasse, ele ia carregar o
carro e depois ia para São Domingos. Nem acreditei. Salvo, eu estava salvo, meu
coração agora pulava de alegria. Até esqueci que tinha caído fora do colégio e
isso era mais uma bronca a enfrentar.
Ele pagou a minha despesa e disse que ia ficar ali mesmo na Praça
do Mercado e eu fui à casa dos padres buscar minha maleta, saí excomungando-os
mentalmente.
De volta à Praça do Mercado, encontrei seu Zuca ao lado do
caminhão que estava terminando de ser carregado com produtos vários, tais como
açúcar, sabão, querosene, café, óleo e outros que seriam revendidos no comércio
são-dominguense.
Almoçamos uma galinha ao molho pardo num desses restaurantes
populares, depois refrigerante, cafezinho, tudo pago pelo santo homem e, em
seguida, pegamos a estrada para São Domingos. (continua)
Raimundo
Fontenele
Nenhum comentário:
Postar um comentário