9 de set. de 2018

FOLHETIM DA SEMANA


O FOLHETIM DA SEMANA do nosso blog LITERATURA LIMITE (que você acessa no link www.literaturalimite.blogspot.com.br) traz nesta edição uma das obras mais importantes da moderna poesia brasileira. Trata-se do poema JUCA MULATO, de autoria do poeta paulista Menotti Del Picchia que, embora publicado em sua primeira edição em 1917, antecipou em cinco anos o modernismo poético brasileiro, uma vez que a Semana de Arte Moderna, tida como o marco zero do Movimento Modernista, só aconteceria em 1922. Esta é atração do quadro COISAS DA ANTIGA CONVIDA.
         Na outra seção da coluna FOLHETIM DA SEMANA, GOZADAS DO FONTECA, o incêndio do Museu, e uma poesia bem humorada das eleições em Cabrália, um país distante e aqui mesmo.

GOZADAS DO FONTECA
        

O INCÊNDIO DO OU NO MUSEU?
                                                       
         A Globete ainda hoje enche o saco com reportagens e loas tecidas ao acervo do Museu, aos documentos históricos do Museu, às obras raras do Museu, ao crânio da Luzia ou de Luiza do Museu... Políticos e governantes saíram falando e tuitando o mesmo blá blá blá hipócrita e demagógico, que lamentam, que foi uma grande perda, e os mais sem-vergonha prometem reconstruir, ajudar na reconstrução... Fora as tais apurações rigorosas para descobrir-se as verdadeiras causas do incêndio e punir severamente se houver culpados, no caso do mesmo haver sido criminoso. Falar nisso, sabem o que aconteceu com o incêndio da Boate Kiss com 220 mortos em Santa Maria no Rio Grane do Sul? Um grande nada!
         Por isso não venham com essa história de reconstrução de Museu. Vão, se o fizerem, se der pra faturarem umas propinas com  superfaturamento, reconstruir o prédio, ó caras pálidas. O Museu não existe mais. As chamas de um fogo intenso queimaram quase tudo. A história, o passado, a cultura, vestígios, peças e rastros de uma civilização milenar o fogo apagou. Que adianta sabermos agora que estava fazendo 200 anos e foi construído por Dom João VI?
         Pra mim, a única questão do grande incêndio do Museu de Arte Nacional é semântica e se traduz na seguinte pergunta:
         FOI INCÊNDIO DO OU NO MUSEU?

XVXVXVXVX

ELEIÇÕES E PIXULECOS

                                      Num país muito distante
                                      Que se chamava Cabrália
                                      Ia haver uma eleição
                                      Esses são os candidatos
                                      Que se apresentam à Nação

                                      Tem o cabra do nordeste
                                      Mentiroso e falastrão
                                      Que faz isso e mais aquilo
                                      Tira o povo do SPC e Serasa
                                      Mas o rouba com a outra mão

                                      Ah e o ladrão de merenda
                                      Da pobre classe escolar
                                      Toda hora diz sou médico
                                      Eu fiiz eu faço mas não diz
                                      Que fez São Paulo sangrar

                                      A tartaruga acreana
                                      Fica hibernando no casco
                                      O seu tema é o meio ambiente
                                      Mas com sua voz horrorosa
                                      Quer nos fazer de palhaços

                                      E tem o mais falso deles
                                      Que berra lá da prisão
                                      Vote em mim ou no Haddad
                                      Que esse também é ladrão
                                      Só nóis semo a solução

                                      Todos eles da esquerda
                                      Chamados de esquerdopatas                                                                     Lutando contra um honesto
                                      Que por pouco, dois milímetros,
                                      Uma faca não lhe mata

                                      Assim termino este causo
                                      Muito justo e verdadeiro
                                      Dizendo que o Bolsonaro
                                      Numa cama de hospital
                                      Ganha deles é no primeiro

COISAS DA ANTIGA CONVIDA: MENOTTI DEL PICCHIA E SEU JUCA MULATO

         Poeta, romancista, ensaísta, cronista, jornalista e advogado, nasceu em São Paulo a 20 de março de 1892, cidade onde faleceu a 23 de agosto de 1988. Obras do autor: Do Vício e da Virtude, 1913; Moisés, 1917; Juca Mulato, 1917; Angústia de D. João, 1922; O Amor de Dulcinéia, 1926; República dos Estados Unidos do Brasil, 1928; A República 3000, 1930; Salomé, 1930; Kalum o Sargento, 1936; Kamunká, 1938; Dente de Ouro, 1946; Deus Sem Rosto, 1967.

POEMA  “JUCA MULATO”




Germinal
1
Nuvens voam pelo ar como bandos de garças,
Artista boêmio, o sol, mescla na cordilheira
pinceladas esparsas 
de ouro fosco.  Num  mastro, apruma-se a bandeira
de São João, desfraldando o seu alvo losango.
Juca Mulato cisma. A sonolência vence-o
Vem, na tarde que expira e na voz de um curiango,
o narcótico do ar parado, esse veneno
que há no ventre da treva e na alma do silêncio.
Um sorriso ilumina o seu rosto moreno.
No piquete relincha um poldro; um galo álacre
tatala a asa triunfal, ergue a crista de lacre,
clarina a recolher entre varas de cerdos e
mexem-se ruivos bois processionais e lerdos
e, num magote escuro, a manada se abisma na treva.
Anoiteceu.
Juca Mulato cisma.
2
Como se sente bem recostado no chão!
Ele é como uma pedra, é como a correnteza,
uma coisa qualquer dentro da natureza,
amalgamada ao mesmo anseio, ao mesmo amplexo,
a esse desejo de viver grande e complexo
que tudo abarca numa força de coesão.
Compreende em tudo ambições novas e felizes,
tem desejo até de rebrotar raízes, deitar ramas pelo ar,
sorver, junto da planta, e sobre a mesma leiva,
o mesmo anseio de subir, a mesma seiva,
romper em brotos, florescer, frutificar!
3
"Que delícia viver! Sentir entre os protervos
renovos se escoar uma seiva alma viva
na tenra carne a remoçar o corpo moço..."
E um prazer bestial lhe encrespa a carne e os nervos;
afla a narina; o peito arqueja; uma lasciva
onda de sangue lhe incha as veias do pescoço...
Ei-lo, supino e só, na noite vasta.  Um cheiro
acre de feno lhe entorpece o corpo langue
e, no torso trigueiro,
enroscam seus anéis serpentes de desejos
e um pubescente ansiar de abraços e de beijos
incendeia-lhe a pele e estua-lhe no sangue.
Juca Mulato cisma.
Escuta a voz em couro
dos batráquios, no açude, os gritos lancinantes
do eterno amor dos charcos.
É ágil como um poldro e forte como um touro;
no equilíbrio viril dos seus membros possantes
há audácias de coluna e elegância dos barcos.
O crescente, recurvo, a treva em brilho frange
e, na carne da noite, imerge-se e se abisma
como num peito etíope a ponta de uma alfange.
Juca Mulato cisma...
A natureza cisma.
4
Aflora-lhe no imo um sonho que braceja; 
estira o braço, enrija os músculos, boceja,
supino fita o céu e diz em voz submissa:
"Que tens, Juca Mulato ?..."  e, rebolcado na erva,
sentindo esse cansaço irritante que o enerva
deixa-se, mudo e só, quebrado de preguiça.
Cansado ele ? E por quê ? Não fora essa jornada
a mesma luta, palmo a palmo, com a enxada
a suster no café as invasões da aninga ?
E, como de costume, um cálice de pinga,
um cigarro de palha, uma jantinha à toa,
um olhar dirigido à filha da patroa ?
Juca Mulato pensa: a vida era-lhe um nada...
Uns alqueires de chão, o cabo de uma enxada,
um cavalo pigarço, uma pinga da boa,
o cafezal verdoengo, o sol quente e inclemente...
Nessa noite, porém, parece-lhe mais quente
o olhar indiferente
da filha da patroa...
"Vamos, Juca Mulato, estás doido ?
Entretanto, tem a noite lunar arrepios de susto,
parece respirar a fronde de um arbusto.
O ar é como um bafo, a água corrente, um pranto.
Tudo cria uma vida espiritual violenta.
O ar morno lhe fala, o aroma suave o tenta...
"Que diabo !"  Volve aos céus as pupilas, à toa,
e vê, na lua, o olhar da filha da patroa...
Olha a mata: lá está! O horizonte lho esboça,
pressente-o em cada moita, enxerga-o em cada poça
e ele vibra, ele sonha e ele anseia, impotente,
esse olhar que passou, longínquo e indiferente!
5
Juca Mulato cisma.  Olha a lua e estremece.
Dentro dele um  desejo abre-se em flor e cresce
e ele pensa, ao sentir esses sonhos ignotos,
que a alma é como uma planta, os sonhos como os brotos,
vão rebentando nela e se abrindo em floradas...
Franjam de ouro, o ocidente, as chamas das queimadas,
Mal se pode conter de inquieto e satisfeito.
Advinha que tem qualquer coisa no peito
e às promessas do amor a alma escancara ansiado
como os áureos portais de um palácio encantado!...
Mas a mágoa que ronda a alegria de perto
entra no coração sempre que o encontra aberto...
Juca Mulato sofre... Esse olhar calmo e doce
fulgiu-lhe como a luz, como a luz apagou-se.
Feliz até então, tinha a alma adormecida....
Esse olhar que o fitou, o acordou para  a vida!
A luz que nele viu deu-lhe a dor que agora o assombra,
como o sol que traz a luz e, depois, deixa a sombra...
6
E, na noite estival, arrepiadas, as plantas
tinham na negra fronde, umas roucas gargantas
bradando, sob o luar opalino, de chofre:
"Sofre, Juca Mulato, é tua sina, sofre...
Fechar ao mal de amor nossa alma adormecida
é dormir sem sonhar, é viver sem ter vida...
Ter, a um sonho de amor, o coração sujeito
é o mesmo que cravar uma faca no peito.
Esta vida é um punhal com dois gumes fatais:
não amar é sofrer;  amar é sofrer mais"!
7
E, despertando à Vida esse caboclo rude,
alma cheia de abrolhos,
notou, na imensa dor de quem se desilude
que, desse olhar que amou, fugitivo e sereno,
só lhe restara no lábio um travo de veneno,
uma chaga no peito e lágrimas nos olhos!
        A Serenata
        1
        Canta, Juca Mulato...
        Ele pega na viola:
        seu dedo nervoso os machetes esfrola.
        Solta um gemido o aço vibrado
        como um grito de dor de um peito esfaqueado.
        É tão suave a canção, tão dolente e tão langue
        que cada nota lembra uma gota de sangue
        a fluir e a pingar dos lábios de uma chaga.
        É noite. A brisa sopra uma carícia vaga.
        A turba espera. O terreiro tem brilhos
        quando, de chapa, a lua esplende nos ladrilhos
        e, sentindo a paixão estuar-lhe a garganta,
        Juca Mulato canta:
        "Veio coleante, essa mágoa
        arrastas triste e submisso;
        também choro, veio dágua,
        sem que ninguém dê por isso...
        Saltas nos seixos de chofre.
        Choras. No mundo inclemente,
        só não chora quem não sofre
        só não sofre quem não sente...
        Procuras dentre os abrolhos
        ver o céu que astros povoaram.
        Eu também procuro uns olhos
        que nunca me procuraram...
        Os céus não vêem tua mágoa,
        nem estas ela advinha...
        Veio d’água, veio d’água,
        Tua sorte é igual à minha.
        Ora em bolhas vãs tu medras,
        eu em sonhos bem mesquinhos,
        Teu leito é cheio de pedras,
        minha alma é cheia de espinhos...
        Se uma rama se desfolha
        sobre teu dorso e resvala,
        corres doido atrás da folha
        sem poder nunca alcançá-la.
        Às vezes, também, risonho,
        um sonho minh’alma junca,
        Corro doido atrás do sonho
        Sem poder tocá-lo nunca.
        Ventura... doida corrida
        de uma folha sobre um veio.
        Folha... Esperança perdida
        de um bem que nunca me veio.
        Assim vou, sangrando mágoa
        e doido, para onde for
        veio d’água, veio d’água
        corro atrás da minha dor!"
       Alma Alheia
        1
        Que tens, Juca Mulato ?
        Uma tristeza mansa
        embaça-lhe o fulgor dos olhos de criança.
        Ele é outro... Um langor anda a abrasar-lhe a pele.
        Não sabe definir o que há de novo nele.
        Fuma e segue pelo ar uma espiral que esvoaça,
        pensa que seu destino é igual a essa fumaça...
        "A vida é mesmo assim..."   ele cisma tristonho.
        "Sai do fogo da dor a fumaça do sonho"...
        Da cocheira, um nitrir, de intervalo a intervalo,
        vibra no ar... É o pigarço.  Esse pobre cavalo
        anda esquecido e há muito que, sozinho,
        sente a falta que faz o calor de um carinho.
        Juca Mulato todo o dia vinha vê-lo...
        Afagava-lhe o dorso, acamava-lhe o pelo,
        e ele, baixando, quieto, as pálpebras vermelhas,
        nitrindo e resfolgando, espetava as orelhas...
        Juca Mulato, então, numa voz doce e calma,
        dizia-lhe baixinho o que ele tinha n’alma.
        Coisa de pouca monta: umas fanfarronadas,
        uns receios pueris, façanhas de caçadas,
        desafios na viola em noites de luar;
        coisas que tinha pejo até de lhe contar,
        que sussurrava a custo, onde, por entre os dentes,
        a gente adivinhava  umas frases ardentes:
        bocas mordendo um seio em que os bicos quentinhos
        tinham a cor da rosa e a ponta dos espinhos...
        Ele ria e a risada espoucava-lhe aos pinchos
        e o pigarço sisudo explodia em relinchos
        que diriam, talvez, traduzido em frases:
        "Toma tento, Mulato! Olha bem o que fazes..."
        Juca afagando-o, então, murmurava contente:
        "Pigarço, você tem uma alma como a gente!"
        Hoje, anda abandonado e pesa-lhe o abandono.
        Há no seu manso olhar saudades de seu dono.
        Quem não vê nesse olhar úmido e cor de enxofre
        que esse cavalo sofre ?
        2
        Vê uma ave voar na tarde calma e suave,
        vem-lhe o desejo absurdo e doido de ser ave.
        Quando junto a uma fonte acaso se debruça,
        se a corrente soluça, ele também soluça...
        Depois, envergonhado, encolhe-se, procura
        no seu imo o porquê dessa vaga ternura.
        Até vendo uma flor, comove-se, suspira...
        "Juca: toma cuidado... Estás ficando gira...
        Deixa de te arrastar, como um doido qualquer,
        atrás da tentação de uns olhos de mulher!"
        E resolve, consigo, ir altivo e insolente,
        fingir que não padece e mostrar que não sente,
        montar o seu pigarço, atacar a restinga
        às foiçadas, beber um cálice de pinga
        na venda do caminho e, entre parvos caipiras,
        de mistura, contar três ou quatro mentiras
        onde lampeja a faca, onde, aos uivos e aos brados
        põe em fuga, triunfante, um bando de soldados!
        Revive a ilusão! Ele é outro! Salvou-se!
        Insidioso, de novo, um olhar meigo e doce
        o alucina, o subjuga, o domina, o amolece...
        E nem sabe porque humilhado  obedece
        à sugestão da luz que cintila naquele
        lânguido e triste olhar que nunca olhou para ele.
       
Texto final:
Raimundo Fontenele

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