1 de out. de 2018

O SONETO RESISTE AOS SÉCULOS


         O FOLHETIM DA SEMANA do nosso blog LITERATURA LIMITE (que você acessa no link www.literaturalimite.blogspot.com.br) traz nesta edição uma espécie de pequena antologia de sonetos.
         O soneto, palavra italiana que tanto pode significar pequena canção, ou mais precisamente pequeno som, é um poema de forma fixa, composto por quatro estrofes, sendo que as duas primeiras têm quatro versos cada, e as duas últimas de três versos cada, que a gente passou a denominar como sendo o soneto uma forma poética de dois quartetos e dois tercetos.
         Há três formas de apresentação do soneto:
         Soneto italiano ou petrarquiano, o mais comum e usado apresenta duas estrofes de quatro versos (quartetos) e duas estrofes de três versos (tercetos).
         Soneto inglês ou Shakespeariano, três quartetos (4 versos cada) e um dístico (2 versos).
          Soneto monostrófico, apresenta uma única estrofe de 14 versos.
         Uma vez que o soneto é caracterizado exatamente como um poema de 14 versos – tradicionalmente 2 quartetos e 2 tercetos –, o acréscimo de um ou mais versos no final do poema (de acordo com a conveniência do escritor) faz da obra um soneto irregular – estrambótico, como o usado, por exemplo, por Miguel de Cervantes, o célebre escritor espanhol e autor da obra prima da literatura universal Don Quixote de La Mancha.
         Finalmente, chegamos à autoria do soneto.
         O soneto teria sido criado por Jacopo da Lentini, poeta siciliano e imperial de Frederico II, porém o poeta toscano Guittone d´Arezzo tornou-se o primeiro a adotar àquilo que seria reconhecido como a melhor de expressão de uma emoção, pensamento ou idéia: o soneto.
         E finalmente chegamos ao poeta italiano Petrarca, por todos reconhecido como o autor a aperfeiçoar e dar forma definitiva ao soneto, como chegou até nossos dias, com seus sonetos dedicados a Laura de Novaes, por quem possuía um amor platônico.
         Convém não esquecer que Dante foi também um sonetista extraordinário, o que pode ser comprovado em seu primeiro livro de sucesso Vita Nuova, com seus sonetos de amor dedicados à jovem Beatriz .
         Outro mestre do soneto de amor é Luís de Camões, o poeta português autor também da obra prima Os Lusíadas, e o poeta e dramaturgo William Shakespeare, autor de peças imortais como Hamlet, Édipo Rei, entre outras, foi também um dos grandes sonetistas em língua inglesa.
         Trazemos nesta edição quatro históricos sonetistas: Petrarca, Camões, Shakespeare e a inglesa Elizabeth Barret Browning e um aprendiz, no caso, eu, com alguns sonetos e um poema, a maioria tendo como temática o Amor.
         Registro, ainda, que entre nós, brasileiros, muitos poetas praticaram essa técnica com absoluto sucesso e louvor: Leandro Konder Reis, Manoel Bandeira, Drummond, e meu amigo Viriato Gaspar, poeta maranhense radicado em Brasília que com os seus 50 Sonetos, ganhou prêmio da Academia Maranhense de Letras.  E muitos outros.
         Então vamos ao sonetos, nesta ordem: Petrarca, Camões, Shakespeare, Elizabeth Browning e, por último, os meus, sentindo-me um tanto constrangido por ousar compartilhar um post com poetas de muito maior envergadura do que eu.
Petrarca
FRANCESCO PETRARCA
SONETO
         Longe de Laura inveja a região que a possui
Nem ave em ninho ou fera em selva obscura
Houve triste como eu no apartamento
Desde que se afastara o encantamento
Do sol que o meu olhar sempre procura.
Tenho pranto por única ventura,
É dor o riso e absinto o mantimento,
E eu vejo turvo o claro firmamento,
E o leito é campo de batalha dura.
O sono é na verdade qual se diz
Irmão da morte e o peito nosso priva
Deste doce pensar que sempre o aviva.
Só no mundo felice e almo país
Verdes ribas e flórido recanto,
Vós possuís o bem que eu choro tanto.

CAMÕES:
SONETO
Quem vê, Senhora, claro e manifesto
O lindo ser de vossos olhos belos,
Se não perder a vista só em vê-los,
Já não paga o que deve a vosso gesto.

Este me parecia preço honesto;
Mas eu, por de vantagem merecê-los,
Dei mais a vida e alma por querê-los,
Donde já não me fica mais de resto.
.
Assim que a vida e alma e esperança,
E tudo quanto tenho, tudo é vosso
E o proveito disso eu só o levo.

Porque é tamanha bem-aventurança
O dar-vos quanto tenho e quanto posso,
Que, quanto mais vos pago, mais vos devo.


WILLIAM SHAKESPEARE

SONETO XVIII
Tradução de Ivo Barroso               

Devo igualar-te a um dia de verão?
Mais afável e belo é o teu semblante:
O vento esfolha Maio inda em botão,
Dura o termo estival um breve instante.

Muitas vezes a luz do céu calcina,
Mas o áureo tom também perde a clareza:
De seu belo a beleza enfim declina,
Ao léu ou pelas leis da Natureza.

Só teu verão eterno não se acaba
Nem a posse de tua formosura;
De impor-te a sombra a Morte não se gaba
Pois que esta estrofe eterna ao Tempo dura.

Enquanto houver viventes nesta lida,
Há-de viver meu verso e te dar vida.
  


ELIZABET BARRET BROWNING

SONETO 43
Tradução de Manuel Bandeira

Amo-te quanto em largo, alto e profundo
Minh’alma alcança quando, transportada,
Sente, alongando os olhos deste mundo,
Os fins do Ser, a Graça entressonhada.
Amo-te em cada dia, hora e segundo:
À luz do Sol, na noite sossegada.
E é tão pura a paixão de que me inundo
Quanto o pudor dos que não pedem nada.
Amo-te com o doer das velhas penas;
Com sorrisos, com lágrimas de prece,
E a fé da minha infância, ingênua e forte.
Amo-te até nas coisas mais pequenas.
Por toda a vida. E, assim Deus o quiser,
Ainda mais te amarei depois da morte.
                                                               

RAIMUNDO FONTENELE

SONETO 2
Um vulto apaga a sombra que deixaste
mover-se ao sol, na tarde cristalina.
Teus olhos são dois rios; corredeiras
que lavam tuas lágrimas na neblina.
O resto é pose, curva do caminho
em que te perdeste rumo ao norte,
sem saberes que a estrada é sinuosa
e tanto leva pra vida ou para a morte.
Assim caminharás, a fronte erguida,
passos trôpegos, e  ombros curvados
sob o peso do fardo que é tua sina.
Nem vulto ou sombra que ao sol se mova
 na tarde de areias  movediças:
apenas uma ausência que caminha.


SONETO 4
No barco de Caronte em mar bravio
fui ter depois à praia ensolarada,
igual a estar fugindo do inferno
até o Brasil, a pátria desejada.
Mas tudo era confuso entre a neblina:
anjos da treva barravam meu caminho
pra que eu não visse mais a luz divina.
Luz sagrada pra quê, neste país de otários?
De pilantras, vagabundos e falsários?
Governantes cruéis ferrando o povo,
como se o próprio povo fosse o gado
abatido e vendido aí aos montes.
Malditos usurpadores do poder!,
eles, e não eu, na barca de Caronte.



SOB AS COBERTAS
Sem um arranhão. Só com palavras nobres
eu te cubro e tu me cobres, em silêncio
quase sagrado, no nosso círculo de fogo
e abandono. Prendes-me sem algemas.

Ouço o sussurrar da fonte. Nos teus lábios
entreabertos, rubros, conto teus dentes.
Eles me mordem onde não dói. Segredam
nos meus ouvidos que o tempo urge.

Dou-lhe a razão e aperto-a contra o peito
para que seu coração fale comigo.
E ele fala: “amore, podemos continuar

de onde paramos?” Respondo-lhe “claro”.
Entrelaçamos as pernas. Um beijo cresce.
E é este beijo que nos leva até às estrelas.

ATÉ UM DIA

Foste embora sem me dizer adeus
naquela sexta chuvosa de agosto.
Fiquei sozinho blasfemando a Deus
por ter assim o meu amor exposto.

Procurei-te na lua e nas estrelas,
no whatsapp e nos porões da alma.
Tuas promessas e o medo de perdê-las
deram-me ânimo para manter a calma.

Chovia, só chovia, e você tão distante,
e você tão ausente e eu tão delirante,
ó musa de silêncio que se desfez no ar.

Se foi. Sem um aceno. Sem um beijo sequer.
Aquele anjo ditoso em forma de mulher.
O poeta sou eu, e só. Escrevendo ao luar.
  

ELA E EU
Ê bem, vem cá. Essa voz que me chama
é a voz da mulher por mim eleita
para ser guardiã dessa colheita,
deste plantio de quem mais lhe ama.
Oi amore, ela diz. E não é sonho:
é uma verdade pura, cristalina,
amar e ser feliz é o que suponho
ser seu maior desejo e sua sina.
Seu corpo é a terra fértil onde planto.
Seu seio é onde sugo e me alimento.
Sua boca é a bilha d'água aonde bebo.
Seus cabelos me cobrem qual um manto.
Sua língua é puro mel e me contento
em procurar seus lábios com meus dedos.

SONETO DO AMOR SOZINHO

O amor é sempre assim. E nos deixa sozinhos,
tropeçando na noite ou caído nas ruas,
em plena escuridão, no meio do caminho,
sem ver uma só estrela ou a sombra da lua.

Tudo é vago, incompleto, pois nada satisfaz
aquele que perdeu o pouco que lhe resta,
pois perdeu, da sua vida, o amor e a paz:
agora nada tem ou o que tem não presta.

Tudo está perdido e esta, sim, é sua sina:
beber o amargo fel de uma longa agonia,
ver fugir-lhe das mãos a mulher e a menina,

e em desespero suspirar um novo dia:
e, quando amanhecer, abertas as janelas,
talvez o sol lhe traga a luz dos olhos dela.

POEMA DO AMOR EM LUA NOVA
 
Acorrentados, um sobre o outro,
e acontecidos
como dois pombos,
duas abelhas,
e um só mistério.
Grito teu nome, porém, um eco
responde o meu
e quase revela o que é só nosso,
o que é só meu
e o que é só teu.

O amor mais novo e mais antigo do que o sol
é este aqui:
a carne pulsa,
a boca geme,
claro e límpido
o desejo se mostra em seu fulgor.
Faz com palavras e línguas
o dia amanhecer
como se fosse um astro,
como se fosse a pedra em que me sento
quando penso em ti.

Para cada som e música há um abraço,
um soluçar com riso na garganta.
Coração, aguenta o tranco
que o momento passa
e deixa marcas cruéis por onde passa.
Deixa o amor e a dor,
juntos,
acasalados.

         Encerramos esta coluna dizendo que nenhuma forma poética foi de modo tão absoluta propícia para cantar o Amor quanto o soneto. Por isso, apesar das suas quedas, quando se torna extremamente banal e simplório, em alguns momentos da história da poesia, ele se reinventa e não morreu, porque, também, o Amor não morre.
         Vejam o que diz Manuel Bandeira a respeito do amor entre Elizabeth e Robert Browning, um amor certamente embalado por sonetos:
         ‘“Nenhum casal de criaturas humanas foi jamais tão longe, mesmo nos domínios da fábula, como Elizabeth Barrett e Robert Browning, cujo grande e inalterável sentimento tem, pelas circunstâncias e vicissitudes em que se formou e cresceu, a beleza cíclica e indestrutível dos mitos”.
Texto final:
Raimundo Fontenele

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