Voltamos com o nosso FOLHETIM DA SEMANA
do nosso blog LITERATURA LIMITE
(acesse-o no link www.literaturalimite.blogspot.com.br),
com uma novidade neste ano de 2019: o segundo livro sobre minhas memórias conectadas
à história de São Domingos.
SÃO DOMINGOS REVISITADA é o título da
obra que deve ser editada e lançada ainda este ano, e vamos nesta página do
nosso blog oferecendo aos leitores saborosos aperitivos dessa obra que poderá
ser degustada posteriormente in totum.
RECORDANDO UM AMIGO
Convivi
com o padre Manoel da Penha Oliveira durante vários anos, quase diariamente.
Primeiro como sacristão, nos meus 12 anos de idade, viajando por todos os
povoados de São Domingos, onde ele rezava missa, casava e batizava. Achava bom, pois, gozando saúde, todo menino é
um pouco guloso. E o padre era muito bem tratado. Sempre faziam bolos, matavam
gordos capões, saborosos assados, doces variados. Era uma festa para o meu
estômago.
E depois, como amigo, durante sua campanha
política, e nos anos seguintes, em São Luís, onde sempre visitava-o em sua
residência ou na Assembléia. E mais tarde, ao encontrá-lo aqui por São
Domingos, em sua casa na Consolação, com o seu inseparável piano.
Sempre preocupado com a Educação, padre
Manoel chegando em São Domingos deparou-se com uma triste realidade. Com
exceção dos filhos da família Torres, dos filhos do meu tio e padrinho Raimundo
Almeida, do senhor João Henrique, seu Álvaro Bezerra, seu Antoizinho Rodrigues,
da família Cazé e mais uns poucos, a maioria dos pais não podiam custear os
estudos de seus filhos fora de São Domingos.
Havíamos terminado o primário. Para que
não ficássemos sem estudar, e esperando pelo milagre da providência divina, ele
criou um Curso de Exame de Admissão, um curso preparatório para ingressarmos no
ginásio. Era uma prática escolar àquela época. Ficamos estudando e talvez por
que tenha notado minha inteligência e interesse pelos estudos, falou com meus
pais sobre a possibilidade de mandarem-me para um seminário para seguir os seus
passos, ou seja, tornar-me padre.
Imaginem. Padre Raimundo Fontenele. Só
rindo. Aceitei o convite, minhas tias convenceram minha mãe a deixar-me partir
e em janeiro de 1962, graças ao Padre Manoel, lá fui eu, levado pelo meu pai, o
“grande” Ribinha, com destino a São Luís e lá ingressei no Seminário de Santo
Antônio onde só permaneci um ano.
No
fim de 1962, após um balanço da minha vida no seminário naquele ano, os padres
chegaram à conclusão que eu não devia permanecer lá. Eu tinha acumulado vários
pontos no quesito matérias. Fui o melhor aluno, com as notas mais altas, após
uma disputa com um aluno de nome Ribamar, de Pedreiras.
Mas
pesavam contra mim notas baixas no comportamento ou disciplina. Porém, nada de
grave. Faltinhas, molecagens, brincadeiras,
pequenas rebeldias. Tipo ficar imitando os padres, sentando na cadeira do
professor, lá na frente da turma, imitando o padre dizendo a missa, etc., e, ou
era flagrado por um padre, ou então sempre existem aqueles dedos-duros,
fofoqueiros, o popular fuxiqueiro.
Resolveram me desligar do seminário. Mas
São Domingos pertence à Diocese de Caxias, e aqui entra o caráter humanitário
do Padre Manoel, além de caxiense era muito admirado pelo bispo dom Luiz
Gonzaga Marelim, o chefe da Diocese. Pois ele conseguiu que eu tivesse uma
segunda chance e, assim, fui transferido para o Seminário da Prainha, em
Fortaleza.
Fosse outro, o padre Manoel simplesmente
lavaria as mãos como Pilatos e eu que fosse cuidar da minha vida. Mas, não.
Quando ele assumia um compromisso ele ia até o fim. Corresse o risco que
corresse. Era um homem de caráter forte, decidido. E lutava por aquilo em que
acreditava.
Enquanto isso, padre Manoel resolveu fazer
da Educação em São Domingos o seu segundo grande apostolado. O primeiro era a
Igreja. O segundo era a Escola. Assim, criou a Escola Paroquial Santo Tomás de
Aquino, tornando-se, cada vez mais, empenhado no desenvolvimento espiritual de
seu rebanho adulto e a cuidar com zelo e amor do ensino e da educação da
juventude são-dominguense.
Esta Escola Paroquial Santo Tomás de
Aquino foi o embrião de outra, a futura Escola Pio XII, responsável pela
formação de tantos jovens que se tornariam mais tarde, médicos, advogados,
engenheiros, enfermeiros, enfim, ilustres cidadãos são-dominguenses.
Os
nomes das Escolas: uma homenageava um dos grandes doutores da Igreja, filósofo
e teólogo da maior importância no desenvolvimento e formulação da doutrina da
Igreja Católica: São Tomás de Aquino que era, junto com Santo Ambrósio e Santo
Agostinho, a trindade de doutores da Igreja Católica muito admirada pelos
estudiosos desse ramo da religião cristã. A Escola Pio XII tomou esse nome em
homenagem ao Papa Pio XII, cujo pontificado vai de 1939 até sua morte em 1958.
Entretanto, falando em Educação, em nome
de escolas, não podemos esquecer o espírito, a alma, a coisa mais importante,
aquilo sem o qual a Educação não existe, que são os professores e professoras.
Por isso cito aqui, pedindo desculpas
pelos lapsos de memória, aqueles mestres e mestras que nunca esqueci e que
construíram a base educacional de São Domingos. Sejam professoras particulares
ou professores do ensino público.
Minha tia Lizeth Fontenele Almeida, dona
Judith Torres, pioneiras do ensino em nosso município. Minha tia Nini,
professora particular e a dona Zilda, a professora Maria Luiza Brandão,
professora Edelves, as irmãs colinenses, professoras Delza e Elza, Dona Olga,
professora Edelves, o dublê de caminhoneiro e professor, José Alberto, a
professora Eunice, seu Zé Carlos, primeiro gerente da Pernambucana em São
Domingos e sua esposa, ótima professora de português. Esses os nomes que me
vieram à mente ao escrever estas reminiscências.
O
ano de 1963, passei-o quase todo no Seminário da Prainha, em Fortaleza. Em
outubro daquele ano fui desligado de vez do Seminário. Era muito mais rígido do
que o Seminário de São Luís. Sofri muito, por ser ainda novo, filho único,
longe de casa, não me sentia integrado, acho que os padres não iam com a minha
cara.
Enfim,
me aconselharam a sair, uma forma mais branda do que expulsão, visto que eu não
havia cometido nenhuma falta grave.
Enquanto
isso, o padre Manoel seguia sua vida e sua rotina em São Domingos, dedicado à
Igreja e à Escola, e, principalmente, atendendo a todos, resolvendo problemas
de toda sorte, confortando e consolando todos que lhe procuravam, se
interessando e se integrando sempre mais à vida da nossa comunidade.
Desligado
do seminário, para a igreja e para alguns padres a gente passa a ser um
proscrito, uma espécie de ovelha negra que não foi capaz de se adaptar ao
rebanho.
Tanto
que, quando o reitor me chamou em sua sala para me comunicar a minha dispensa,
já estava com minha passagem de volta comprada, mas só até Teresina. Depois eu
que me virasse.
Mesmo
sendo menor, havia recém completado quinze anos, naquele tempo não havia essa
preocupação de juizado de menor, de não poder viajar sem acompanhamento, o
certo é que dois dias depois peguei o ônibus da Empresa Expresso de Luxo,
Fortaleza-Teresina, e me mandei de lá, mais ansioso de gozar a liberdade do que
preocupado com a reação da família e do próprio padre Manoel.
Naquele início dos
anos sessenta na maioria das cidades nordestinas não havia esse negócio de
rodoviária. Chegando em Teresina, desci do ônibus na Agência que ficava na
Praça Saraiva, peguei minha maleta e saí procurando onde passar a noite.
Numa ruazinha ali
mesmo perto da Praça descobri um Hotel, coisa simples, onde ficaria hospedado.
A dona chamou um empregado pra ir me mostrar o quarto, e o cara era um pretinho
homossexual, maranhense de São Luís, e se mostrou disposto a conversar.
Eu já tinha decidido
que ia aproveitar um pouco a liberdade antes de chegar em casa. E perguntei pra
ele sobre as novidades. Ele disse que era um show do cantor cubano Bievenido
Granda, um cantor de boleros, tangos e ritmos cubanos. Por portar um grande
bigode, no cartaz que anunciava seus shows, após seu nome, acrescentavam “El
bigode que canta”!
Sua música Perfume de
Gardênia era um sucesso em toda a América Latina, inclusive em todo o
território brasileiro. Falei para o carinha do hotel arranjar uma amiga que a
gente ia assistir o show no dia seguinte. Eu pagava tudo. Tinha um pouco de
dinheiro, e um relógio da marca “Hernavin”, novo em folha, que eu entreguei pra
o camareiro do hotel vender para nós.
Não apenas o show,
mas fiquei uns três dias aproveitando a vida e gastando a grana da venda do
relógio, e quando dei um balanço vi que o dinheiro mal dava para comprar
passagem até Caxias.
De Teresina pra
Caxias é um pulo, e eu cheguei à Casa Paroquial na Praça São Benedito na hora
do café da manhã. Os responsáveis pela paróquia eram os monsenhores Clóvis e
Gilberto e, conforme disse antes, quando a gente é dispensando do seminário
passa a ser olhado com outros olhos.
Fui tratado friamente
pelos monsenhores, senti como se eles me dissessem “olha, a gente não tem mais
nenhuma obrigação para contigo, te vira!”, pois nem para o café me convidaram.
Pedi para deixar
minha maleta ali que em seguida voltaria para buscá-la, e me danei a bater
pernas pelas ruas, com os pensamentos mais sombrios agora me acossando e me
dando um aperto no coração. Praticamente expulso do seminário, sem saber como
enfrentar pais e tios, envergonhado perante o padre Manoel, e, o pior, faminto
e sem um tostão no bolso.
Naquela aflita caminhada
fui parar na beira do rio Itapecuru e até pensei como seria bom se aquelas
águas me levassem e acabassem com todo aquele sofrimento. Mas a fome falou mais
alto.
Caminhei até a Praça
do Mercado, cheia de movimento, de caminhoneiros, de gente andando apressada
pra lá e pra cá. Resolvi entrar numa lanchonete e comer e depois, sem dinheiro
para pagar, sair no pinote, correndo mesmo e fosse o Deus quisesse. E foi o que
fiz.
Comi um pastel e uma
fatia de bolo e fiquei bebericando o resto do café com leite, devagar,
devagarinho, criando coragem pra pegar o embalo e correr dali e daquela
situação deveras vexatória, humilhante. Nem sei direito os sentimentos que me
afligiam tantos e tão diversos eram.
O certo é quando
cheguei no limite do suportável, coloquei a xícara no balcão e comecei a tomar
impulso pra me pírulitar dali, quando, mandado por Deus, vejo entrando na
lanchonete um conhecido, amigo do meu pai, o senhor Zuca da Totonha. Ele era
caminhoneiro, casado com dona Totonha irmã da dona Alvina e da dona Santana do
Sebastião Mota.
Joguei-me nos braços
do seu Zuca, até alguma lágrima deve ter rolado, e lhe contei rapidamente minha
situação. Ele disse que não me preocupasse, ele ia carregar o carro e depois ia
para São Domingos. Nem acreditei. Salvo, eu estava salvo, meu coração agora
pulava de alegria. Até esqueci que tinha caído fora do colégio e isso era mais
uma bronca a enfrentar.
Ele
pagou a minha despesa e disse que ia ficar ali mesmo na Praça do Mercado e eu
fui à casa dos padres buscar minha maleta, saí excomungando-os mentalmente.
De volta à Praça do Mercado,
encontrei seu Zuca ao lado do caminhão que estava terminando de ser carregado
com produtos vários, tais como açúcar, sabão, querosene, café, óleo e outros
que seriam revendidos no comércio são-dominguense.
Almoçamos uma galinha
ao molho pardo num desses restaurantes populares, depois refrigerante,
cafezinho, tudo pago pelo santo homem e, em seguida, pegamos a estrada para São
Domingos.
Entrei em casa
sobressaltado, mas fui logo dando a real para a minha mãe que, apesar de brava,
era muito compreensiva, e me lembro que ela disse que se era para ser um padre
sem vocação, quer dizer um mau sacerdote, era melhor ter saído.
E acho que ela ficava
também contente em me ter perto dela, mãe a gente sabe como é, e além do mais
eu era filho único, apesar de ter uma irmã de criação, registrada como filha, a
Gracinha, que Deus também levou em 2014, como já levara meu pai em 1987 e minha
mãe em 2011.(Continua no próximo Folhetim, com novas aventuras e episódios que marcaram a vida da nossa cidade).
Texto final:
Raimundo Fontenele
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