Além dos poemas e fotos, o texto de
apresentação da autoria do escritor gaúcho Juremir Machado da Silva, e um texto
de minha autoria que compõe uma das orelhas do livro também estão aqui.
A
P R E S E N T A Ç Ã O
A poesia de Raimundo Fontenele é surpreendente:
tem cheiro de maldição. Vai direto ao ponto. Não poupa nem se poupa. É uma
crônica ferina dos tempos que, quando não correm, voam. Há pressa em levar
vantagem em tudo. O poeta fala da vida, da merda, das sacanagens, da política e
dos seus ladrões. É pau puro. O poeta é nordestino.
O Nordeste é pátria da poesia. Tem
lirismo nessa leitura amarga do cotidiano. Está tudo ali: a estrela de cinema, o
herói da televisão, o personagem da história em quadrinhos, o corrupto, a puta, o doente na fila do SUS, o Mané diante
do PAC, as promessas terrenas e as teorias da salvação.Tudo num ritmo
frenético, carnavalesco, carnavalizado, barroco, eclético, profético,
devastador.
Juremir
Machado da Silva
Escritor
gaúcho
PORQUE ME UFANO DO
MEU PAÍS
O poeta deve estar afinado como seu
tempo. Toque ele seja qual for o instrumento: harpa, lira, atabaque, bongô,
viola paraguaia, guitarra flamenca, baixo elétrico, picape, serra elétrica.
Para um ouvido como o do Hermeto Paschoal tudo é música. Aliás, pra ele, o
mundo é tão someente uma nota musical. Fim de século, tudo em ruínas: os bons
costumes, a língua, os políticos, a moral dos gestores públicos, a cegueira mal
intencionada da justiça e de seus asseclas, tudo em ruínas, meu triste e
desalentado poeta.
O novo século, o XXI, pra valer, nem
começou ainda. Estamos discutindo uma educação completamente falida. Vivemos
nos escondendo, amedrontados, pagando por uma segurança que não existe. A saúde
do povo, tenham dó, ó sucessivos ministros e secretários!
É como se todo esforço, toda a luta,
todas as conquistas da humanidade inteira e ao longo de todo o tempo que existe
estivesse agora escapando de nossas mãos. Por que não sabemos o que fazer com
elas? Por ganância? Por falta, mesmo, de juízo?
Aonde a gente pensa que vai parar,
sentados nesse carrossel eletrônico, cujos cavalos do apocalipse se soltaram e
estão pastando por aí, às margens do Guaíba, da Lagoa Rodrigo de Freitas, do
Tietê, do Amazonas, do Mearim, do Solimões; do Sena, do Danúbio, do Eufrates,
do rio Nilo, do Lago Ness?
A vida não pode ser só esta palhaçada
que fazemos dela, Tirando as cascas, as
peles, quem sabe, a epiderme, talvez exista ainda alguma coisa de muito nobre
entre nós e que nos impeça de roubar o dinheiro da merenda escolar de jovens e
crianças que, muitas vezes, nem têm o que comer, ouviram senhores prefeitos e
senhoras primeiras damas?
Raimundo
Fontenele
VARIAÇÕES SOBRE O VIL METAL
Ó!, OAB,
como é que pode alguns de seus
membros
estarem a serviço de Marcolas e
Beira-Mares
(guias nunca dantes navegados)
e não me guia
nem me vem com esse papo furado de
cidadania
que aqui ninguém é trouxa
e está todo mundo armado de tacape
e pau pesado.
Partidos políticos
políticos partidos
partidos em pares desiguais para a
saúde do povo
partidos iguais para comerem o
nosso mingau
au au Juiz Lalau.
Ó conchas curvas e recurvas
que guardais em vossos ventres
sacrossantos e imundos
as não-leis e toda espécie de
fauna e faunos
ó nobilíssimos senadores!
ó ilustríssimos deputados!
Palácio do Planalto
plano e alto onde se bolam altos
planos
para roubarem o nosso suado
dinheirinho
em nome dessa coisa sagrada
chamada Constituição:
a de 1988, Anã e Cidadã.
E as Igrejas
onde te ajoelhas
e reviras os bolsos e os olhinhos?
Bendito sejas tu,
Mané,
com teu bonezinho.
POLITICAMENTE INCORRETO
Anão é anão, e pronto.
Preto é negro e negro é preto,
e preto é preto e negro é negro,
doeu em alguém falar isso?
Careca é careca mesmo, pouca
telha,
aeroporto de mosquito,
e sodam-se com ph de farmácia.
O cara que tem barriga é
barrigudo,
baleia, balofo, rolha de poço, é
ou não é?
E o cara alto e magro é magrelo,
magricela, vara de virar tripa,
espanador do céu, está fazendo
concurso
pra entrar numa garrafa
e pra passar a chuva embaixo de
fio,
“é mentira, Terta?”
Baixinho é anão de jardim,
tamborete, pintor de rodapé.
Viado é viado mesmo,
gay, bicha
louca, qualira e tal;
e ladrão de gravata é ladrão
igual,
é safado e marginal,
senão o poema
não sai assim
ao natural.
NO DOS OUTROS É REFRESCO
Quando a gente procura com
urgência por saúde
Quando se vai atrás de algum
direito lesado
Quando alguém sai em busca de
educação,
cultura, lazer, conhecimento
Quando se nutre a esperança nesta
deusa cega
dos três olhos chamada Justiça
Quando o medo de assalto, de
morte, de seqüestro
não nos deixa viver em paz
Quando se vai ao Sr. Dr. Governo
cobrar o nosso dinheiro
Em forma dos serviços ali de cima
que deviam ser prestados
Dinheiro que o Governo nos toma em
forma de impostos
Dinheiro que o Governo nos toma
para dar
pra seus cupinchas e apadrinhados
Dinheiro que o Governo arranca da
gente
pra jogar no ralo da corrupção
Dinheiro nosso que o Governo gasta
com o luxo e a ostentação nos seus
palácios
Enfim só nos resta a volta à
infância e cantar
como fazem as criancinhas:
“Fui no tororó beber água não
achei...”
O RAPA
O mundo podia ser mais alegre,
mas os caras chegam carregando
armas
e mochilas de sangue.
Mil vezes eles te matam de todas
as maneiras,
com revólver e com punhal,
com remédio e comida,
mil vezes eles te matam de todas
as formas,
com narcótico e filosofia,
com religião e poesia.
Marcho igual a esses soldados
espalhados pela terra,
e, apesar de estar
neste minúsculo corpo que me
habita,
sinto-me pisar em campo minado,
sei que também estou no meio de
uma guerra.
Talvez esperassem me ver cortar os
pulsos,
ou que pulasse do vigésimo andar
e caísse en la mierda
mas eu vou viver queiram ou não
queiram.
UM RAP PARA OS MANOS
Você acorda de porres homéricos,
nem sabe o que fazer para curar
tal ressaca
e aí engole chá de boldo, engovs,
sal de frutas.
Recebe cobrador na porta, chute
nos testículos,
e a safada da tua mulher te
enfeita
“os cornos de chifres”.
A polícia te persegue, bandidos
querem te ferrar,
o juiz te condena, os amigos te
abandonam
e você vai apodrecer num hospital
do SUS ou no xadrez,
e ainda bem que você não foi parar
no IML.
Por isto, camarada,
Gosto da velocidade da máquina,
da sorte e do azar num jogo de
dados.
Falo pelos cotovelos,
Dou murro em ponta de faca,
Saio de fininho quando a barra
anda pesada,
E levo moeda de falso ouro para
enganar Caronte
Sempre que faço essa travessia do
inferno.
POEMA UM DE SEIS
Os anos oitenta acabaram comigo:
os lobões, os cazuzas, o álcool
e era terrível suportar aquelas
tardes
derrubado pela Deusa Diamba
e otras cositas más.
Os sons românticos e os
sentimentos bregas
de rosanas, josésaugustos e mais álcool
tudo isto misturado aos
ticos-ticos no fubá,
a vida bolorenta e com ascos,
mas com vicentescelestinos e
dalvasdeoliveiras,
e viva os anos quarenta, cinqüenta,
sessenta,
setenta, oitenta e noventa.
Hoje não. Nos anos dois mil não.
Hoje sou um ressuscitado, virgem,
bebendo chás de eucalipto e menta,
ajoelhando-me nos altares
a deuses conhecidos e estranhos;
mentindo que sou poeta e que,
nas horas vagas,
vivo de acordo com o que sonho e
escrevo.
POEMA DOIS DE SEIS
Aquela rosa vermelha,
cintilando no jardim,
abre meu coração e os livros.
E os olhos. Os mesmos olhos de
1948.
“Teu amor é a razão da minha
existência”...
Não se diz mais isso.
Não se ama mais nada.
Parece que aquela rosa, tão bela!,
está fadada a fenecer
sufocada por espinhos.
ESTRELAS
teus olhos piscaram
antes delas
e o céu não precisou de ti
para seres anjo
nem precisaste do céu
para não caíres
ou sucumbires
naquilo que talvez
nem seja eterno
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