Na
nossa coluna de hoje QUARTA FEIRA É DIA DE RF do blog LITERATURA LIMITE (www.literaturalimite.com) estamos
publicando mais três poemas do nosso último livro de poesias, publicado em 2014
pela Editora Alcance, Porto Alegre-RS, A
VIA CRUCIS DE UM POETA SEM NOME.
Numa
análise crítica dessa obra, o escritor Alberico Carneiro escreveu no Suplemento
Literário Guesa Errante, em 7 de março de 2015: “A pulsação dos poemas de
Raimundo Fontenele está no espaço, no lugar da poesia, que é justamente aquela
área de fronteira invisível, inaudível, de silêncio e expectativa, onde o óbvio
não pisa, onde cessa de respirar o que respira, para o leitor poder entrar na
morada do indizível. Só após a catástrofe e o silêncio a poesia é possível”.
No
capítulo final da publicação dos poemas deste publicaremos aqui o artigo completo
do professor e escritor Arberico.
A VIA CRUCIS DE UM POETA SEM NOME
Quarta
Estação
JARDIM DAS
EXPERIÊNCIAS
Os aguaceiros
da vida,
os aguaceiros
da vila
que
escorreram de mim
sessenta anos
depois
numa tal Vila
Jardim,
cavalo e
lama, lua cheia,
águas do
início ao fim.
A lua, sempre
a lua, quase estrela
brilhando em
nosso caminho,
estreito e
raro,
pelo qual se
vai ao paraíso.
Casas
distantes,
sapos
cantantes,
alto-falantes,
farsantes,
andantes,
instantes tão
fugazes,
e como dói só
lembrá-los.
Não sei nadar
e nem sei voar;
pisar em
terra firme já é tão precário...
Mas a Lagoa
do Zé Feio
é meu espelho
de Narciso.
E é por ela e
só nela
que nado,
ando, vôo.
O Cavalo de
Troia em que andei montado,
em províncias
talvez desabitadas,
habitações de
longínquas terras,
quase diria
na planície dos Eletos,
onde
levava-se os animais no cio,
sob o luzir
de fecundantes e rubras espadas
e morrer-se à
míngua
pelas
estradas ontem festejadas.
Quinta
Estação
O MITO
Raspar com
uma faca, como se
escama o
peixe, é fazer nascerem
e crescerem
os mitos que
não nos
pertencem.
E por ser o
mundo um animal
sem formas,
por ele trafegam,
navegam e
voam os mitos
ancestrais
que nos criaram,
e alimentaram
em nós o dom
da forma mais
que perfeita.
Blasfêmia é
isso: erguer-se qual
qual um deus
ferino e desalmado
para que
ajoelhemos e lancemos
nossa rede ao
mar: turva
água de amar,
pescaria
insana, e só
por isso
o mito permanece.
Se é para
cair, sejamos
justos: o
mito não
é amor e não
é ninguém,
apenas a
imagem à semelhança desta outra
que nos
devolve o espelho.
Sexta
Estação
FEIRA DE
INFÂMIAS
Em Porto
Alegre, numa terça-feira à tarde,
dei-me pernas
de Leopold Bloom
e saí a
passear
numa quadra
limite de si mesma,
com geografia
igual a tantas outras
revisitadas e
vistas por aí, noutras cidades.
Um velhinho
tarado que a ninguém cumprimenta
mas, com seu
olhar, atormenta
virgemzinhas
de faz-de-conta.
Estátuas-vivas
na esquina da Borges com Rua da Praia,
três meganhas
na deles,
nenhuma
palavra é pronunciada às três da tarde
num ponto
enigmático da cidade.
Lanceiros sem
lanças,
o algodão
doce cor de rosas,
uma moça
mostrando peito e bunda,
nenhuma
calmaria e o sangue ferve.
Na calçada em
frente à galeria
onde outrora
a Editora Globo
publicou seus
poetas de fraque ou de chinelos,
ali, exato e
certo,
uma cigana
fajuta lê a minha mão,
parecendo-me
dizer que sou sincero.
Nem observo
se lhe dei moedas,
porque do
outro lado da rua
a rua cresce
e sobe
qual fumaça
de oferenda aos orixás;
a rua cresce
como rabo de cavalo
onde um
donzelo mal disfarça
o brilho do
suor e lantejoulas.
Respiro de um
pulmão asfixiado,
por outras
coisas que ao longe vejo:
um maluco,
bebum dos inferninhos,
faz discurso
dizendo-se deputado:
“eu também
sou político e o que é meu é meu
e o que é seu
é meu também”,
e cambaleia
atirando ao chão
uma garrafa seca que lhe servira,
até ali, de
microfone.
Atravesso um
sinal e noto ao lado
três rapazes
que, entre si e arredores,
lançam rindo
olhares de fanta-uva.
O poeta,
então, de puro tédio,
barbicoça seu
queixo de transeunte
e rodopia
sobre os próprios calcanhares
de olho vivo
no sinal
e na passagem
das horas.
Raimundo
Fontenele
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